O leitmotiv na literatura
A respeito da técnica mnemônica empregada por Liev Tolstói no romance "Khadji-Murát".

Khadji-Murát caminhou com passo apressado pelo parquete da sala de espera, balançando todo o seu corpo esguio, por causa daquele seu manquejar ligeiro sobre uma perna mais curta que a outra.
O termo alemão “Leitmotiv” pode ser traduzido como “motivo condutor”. Foi popularizado pela obra de Richard Wagner (1813-1883), que, sistematicamente, inseria em suas óperas temas melódicos que se repetiam sempre que determinados personagens, emoções ou ideias eram reintroduzidos em cena.
O cinema bebe muito dessa fonte.1 Repare em como, na série Star Wars, The Imperial March é a identidade musical de Darth Vader, tão icônica quanto sua máscara preta; ou em como, para quem assistiu O Senhor dos Anéis, Concerning Hobbits inspira imediatamente todo o conforto e familiaridade do Condado; ou em como, em Jaws, a proximidade do tubarão é sempre anunciada pelo mesmo tema ominoso; ou em como, em Indiana Jones, The Raiders March nos faz vibrar nos momentos de maior heroísmo do arqueólogo.
Convém salientar que esses temas não têm formas fixas, mas variam de acordo com o contexto, adotando novos significados. Um exemplo é The Imperial March, que se torna débil e sutil, e vai esmaecendo aos poucos, quando Darth Vader agoniza seus últimos instantes.
A literatura, é claro, não quis ficar de fora e tratou de tomar o conceito emprestado. O crítico James Wood2 usa a expressão “Leitmotiv mnemônico” para se referir a uma característica ou atributo essencial e inalterável repetido para garantir a vitalidade de personagens planos, ou seja, aqueles sem profundidade psicológica, geralmente secundários. Além disso, como o próprio nome sugere, esse recurso tem ainda uma função mnemônica, ou seja, de ajudar o leitor a se lembrar de uma personagem específica numa obra de várias personagens.
James Wood cita Charles Dickens, Marcel Proust, Jane Austen, Thomas Mann, Thomas Hardy e o próprio Liev Tolstói como alguns grandes usuários do Leitmotiv na seara literária.
Ao ler Khadji-Murát, fiquei muito impressionado com a capacidade descritiva de Tolstói, capaz de dar vitalidade imediata mesmo a personagens de existência muito breve, fazendo-os saltar do papel desde a primeira página em que aparecem. É o caso dos quatro cossacos vencidos por Khadji-Murát e sua guarda pessoal (pág. 174):
“Quatro cossacos o seguiam: Fierapontov, alto, magro, o primeiro em roubar ou arranjar as coisas, o mesmo que vendera pólvora a Gamzalo; Ignatov, que estava cumprindo o tempo de serviço, um camponês robusto, de meia-idade, jactancioso da sua força; Míchkin, um rapaz fraco, menor de idade, de quem todos caçoavam, e Pietrakóv, jovem muito louro, sempre afável e alegre, que era filho único de uma viúva.”
Num instante, o leitor consegue visualizar cada um dos cossacos e atribuir-lhes histórias e personalidades características, mesmo só os conhecendo na superfície. É saber da juventude e alegria de Pietrakóv, e do fato de que é filho único de uma viúva, que dá um peso trágico à sua morte, descrita apenas três páginas depois:
“Deitado de costas, o ventre aberto, o rosto jovem dirigido para o céu, Pietrakóv morria, arquejando como um peixe.”
Em Khadji-Murát, a prosa de Tolstói é generosa no uso do Leitmotiv, o que muito convém a mim, um falante de português: mesmo Khadji-Murát sendo habitado por dúzias de personagens, não tive nenhuma dificuldade para identificá-los, a despeito dos nomes complicados do leste europeu.
O mestre russo, porém, subverte o conceito apresentado por James Wood à medida que, apesar de insistir nas mesmas características para os mesmos personagens, encontra uma variedade de formas de enxertá-las no fio da ação, de forma que trazem sempre o frescor da novidade. Ele mostra que, se bem usado, o recurso pode enriquecer inclusive os personagens esféricos, aqueles com densidade psicológica.
Veja por exemplo Eldar, um dos miurides3 que segue Khadji-Murát. Eldar não tem densidade psicológica, não tem falas profundas e não sabemos sua história pregressa, mas, em compensação, tem alguns traços fundamentais, entre os quais se podem listar sua juventude, sua força, sua beleza e seus olhos de carneiro. Vejamos algumas das formas como essas qualidades emergem ao longo do romance:
“Eldar sentou-se, cruzando as pernas, e fixou em silêncio os seus bonitos olhos de carneiro sobre o velho que falava muito.” (pág. 31)
“Eldar fixara os olhos de carneiro nas pernas cruzadas e mantinha-se imóvel como uma estátua, enquanto as mulheres permaneciam na sáklia.” (pág. 34)
“— Eldar — murmurou Khadji-Murát. E Eldar, ouvindo o seu nome e, sobretudo, a voz de seu miurchide4, ergueu-se de um salto sobre as pernas fortes, ajeitando a papakha5.” (págs. 48 e 49)
“O bonito Eldar, de mangas arregaçadas sobre os fortes braços, enxugava a cilha da sela pendurada num prego.” (pág. 94)
“— Pergunta de onde lhe veio esse dinheiro — disse Eldar, virando o seu bonito rosto sorridente na direção de Loris-Miélikov.” (pág. 96)
Como se vê, o ato de olhar dá ensejo à descrição dos olhos; o de levantar-se, à descrição das pernas, e assim por diante. Com isso, Tolstói vai descrevendo o personagem em doses homeopáticas ao longo de todo o romance, impingindo cada uma de suas ações de algo de particular: Eldar não olha como os outros olham; no romance, apenas ele tem olhos de carneiro. Essa singularização é capaz de conferir vivacidade a qualquer personagem seja ele esférico, seja ele plano.
Em contraste, um mau escritor usaria o Leitmoiv da mesma forma que Homero elaborava seus epítetos formulaicos: Ulisses é sempre “de mil ardis”, Aquiles é sempre “de pés velozes”, Aurora é sempre “de róseos dedos”. Nos poemas épicos, essa repetição cumpria duas funções: a métrica e a mnemônica. Na ficção moderna, porém, soa como um um bordão caricato, a exemplo do “Não contavam com minha astúcia!” do Chapolim Colorado, ou do “Isso é uma bichona!” de Paulo Silvino, no extinto programa Zorra Total.
Mais interessante que caso o de Eldar é o de Khadji-Murát, o personagem-título. Ele tem muitas características, algumas delas descritas de maneira recorrente, mas, na minha opinião, apenas duas delas são essenciais: a sua manqueira e, com menor relevo, seu sorriso infantil, contraditório com sua fama guerreira.
Assim como as características de Eldar, as pernas de Khadji-Murát aparecem de maneiras sempre distintas. Vejamos algumas brechas que Tolstói achou para descrevê-las:
Khadji-Murát apeou-se e, manquejando um pouco, entrou no alpendre. (pág. 29)
Khadji-Murát caminhou com passo apressado pelo parquete da sala de espera, balançando todo o seu corpo esguio, por causa daquele seu manquejar ligeiro sobre uma perna mais curta que a outra. (pág. 83)
Naquela mesma noite representava-se uma ópera italiana no teatro recém-construído, decorado ao gosto oriental. Vorontzóv estava no seu camarote, e, na plateia, aparecia o vulto facilmente reconhecível de Khadji-Murát, com a sua perna curta e o seu turbante. (pág. 87)
Vendo Khadji-Murát, puxou uma pistola que trazia à cintura e apontou-a na sua direção. Mas antes que tivesse tempo de atirar, Khadji-Murát, não obstante a sua manqueira, lançou-se como um gato do patamar da escada sobre Arslan-cã. (pág. 151)
Não só há grande variedade nas formas como o manquejar emerge, como também há uma progressiva revelação da natureza dessa deficiência. Ela chega à culminância no momento em que, ao narrar a própria história de vida para um oficial russo, kadji-Murát conta que, para fugir do cárcere e provável execução, saltou de um despenhadeiro, ficando gravemente ferido. Resgatado por um pastor, sarou por completo, à exceção de sua perna encurtada (pág. 101).
A partir dessa história, as pernas de Khadji-Murát deixam de ser uma característica arbitrária e se tornam um signo de seu caráter. Descrevê-las é descrever sua alma.
Conclusão
Na prosa ficcional, se o propóstio da descrição fosse meramente o de informar, um pequeno parágrafo na primeira aparição do personagem, para depois nunca mais tocar no assunto, seria mais que o bastante. Mas acontece, ao contrário, que um dos grandes trunfos da literatura é sua capacidade de evocar imagens.
Em Khadji-Murát, Tolstói atinge o verdadeiro potencial do Leitmotiv. Ao repetir características essenciais dos personagens ao longo do romance, fazendo isso de forma orgância, ele dá um caráter cinematográfico à sua prosa.
Na era audiovisual em que vivemos, o uso dessa técnica pode ser fundamental no resgate da leitura. É uma forma de atrair as gerações embotadas cada vez mais pelos serviços de streaming, pelos vlogs do YouTube, pelos segundos do TikTok. Se quiser se salvar, a literatura precisará se render ao cinema.
Para redigir esse parágrafo e o próximo, me apoiei no vídeo do YouTube What is a Leitmotif — 4 Ways to Tell a Story With Film Music, do canal StudioBlinder.
WOOD, James. Como funciona a ficção. São Paulo: SESI-SP Editora, 2017. Ver páginas 117 a 120.
Participantes da seita muçulmana do miuridismo, dedicada à guerra santa contra o domínio russo no Cáucaso.
Chefe dos miurides.
Chapéu de pele.