Moldura literária
A técnica da "narrativa dentro da narrativa", aplicada ao romance "Khadji-Murát", de Tolstói.
“Lembrei-me então de uma velha história caucasiana, que presenciara em parte e que completei com o depoimento de testemunhas oculares. Ei-la, como se formou em minha lembrança e imaginação.”
Khadji-Murát1 é uma das obras mais maduras e minuciosas de Liev Tolstói, e no entanto ele próprio a considerava inacabada. Trata-se de um pequeno romance histórico sobre o lendário Khadji-Murát, que foi governante da Avaria e primeiro-comandante do imame Chamil, chefe da resistência islâmica ao avanço russo sobre a região do Cáucaso. Na obra, acompanhamos seus últimos dias, quando rompe com Chamil e bandeia para o lado russo.
Posso listar Khadji-Murát entre meus romances favoritos, não só pelo universo exótico e pelo enredo agitado, mas, principalmente, pela forma que é narrado. Tem uma qualidade cinematográfica o equilíbrio que Tolstói achou entre a ação e a descrição, sempre cheia de movimento.
Mais especificamente, me impressiona o uso exemplar que Khadji-Murát faz de dois recursos narrativos: o Leitmotiv, que conheci pelo crítico James Wood2, e a molduragem, que vi no curso de Letras.
Para o texto não ficar cansativo, vou abordar cada conceito num post diferente. No de hoje, trataremos exclusivamente da molduragem.
Moldura literária

A molduragem, como uma matrioska3 literária, é uma técnica que enxerta uma narrativa dentro de outra. Na narrativa externa (a moldura) há uma personagem que, fazendo as vezes de narrador, começa a contar uma história (a narrativa central, ou narrativa emoldurada).
Nas mãos de um escritor habilidoso, a molduragem não se explica pelo mero capricho: as duas (ou mais) instâncias narrativas devem ser profundamente interligadas, de forma que uma ilumine e aprofunde a temática da outra.
Dois grandes exemplos de molduragem são o Decamerão, de Giovanni Boccaccio, em que um grupo de moças e rapazes se abrigam num castelo, para fugir da peste negra, e começam a contar histórias; e As Mil e Uma Noites, em que Xerazade, para protelar a morte, conta histórias para distrair o rei louco com que se casou. Esses dois casos nos mostram que a moldura não precisa, necessariamente, aparecer às margens da narrativa central; as múltiplas narrativas centrais e molduras narrativas podem vir intercaladas, assim como pode haver mais de um narrador-personagem.
Não há um molde fixo: enquanto houver criatividade e inteligência no mundo, os narradores seguirão concebendo novas formas de usar a molduragem. Mas em formas breves há uma clara tendência de haver somente uma narrativa central e uma moldura. Puxando de memória, alguns contos ou novelas em que me lembro de ter visto o uso da moldura são A aranha negra (Jeremias Gotthelf), Noite na taverna (Álvares de Azevedo), O espelho (Machado de Assis), A fraude (Nikolai Leskov), Depois do baile (Liev Tolstói) e Le Signe (Guy de Maupassant).
Uma reflexão que eu tenho sobre a moldura literária é que ela está em vias de extinção, dado que o ato mesmo de narrar, conforme o diagnóstico feito por Walter Benjamin há quase um século4, é uma faculdade declinante.
Em termos materiais, a tendência é que todos nos tornemos cada vez mais ricos. Em contrapartida, porém, somos cada vez mais pobres em experiência comunicável. O mesmo espírito que levou o homem a dominar o mundo acabou por esterilizá-lo para novas aventuras. O que resta a ser desbravado além das profundezas marinhas e alturas siderais, inacessíveis ao homem comum?
Ao mesmo tempo, no meio urbano, vemos uma atomização crescente do indivíduo, alienado tanto de seus vizinhos mais próximos quanto da nação como um todo, à qual não se sente pertencente. Além disso, tanto nas democracias quanto nas ditaduras, a tendência das regulações é abrangerem cada vez mais aspectos das vidas social e privada, sufocando o cidadão inerme e reduzindo seu espaço de ação.
A situação é mais grave quando voltamos a atenção às gerações mais novas, cujas experiências se resumem quase que totalmente ao ambiente virtual. Não temos tantas histórias de vida quanto nossos avós, e, mesmo que tivéssemos, somos tímidos e desajeitados demais para contá-las. Já quanto aos velhos, sua experiência se torna em parte absoleta num mundo em rápida transformação, não só em termos tecnológicos, mas também, por exemplo, nas relações homem-mulher e nas relações de trabalho. E, nos casos em que os velhos conselhos mantêm seu préstimo, partem de perspectivas tão alienígenas que, nas gerações mais novas, inspiram pouco mais que desdém.
Numa era marcada pelo esgotamento da experiência, toda narrativa está fadada ao artificialismo, como a cópia da cópia da cópia de algo verdadeiro. Portanto, sendo a moldura literária uma expressão dos tempos idos da cultura oral, não é natural nem esperado que o narrador contemporâneo a utilize.
Mas esta seção foi só um esboço de pensamento; pode ser que eu esteja completamente errado. Por isso, vamos ao que interessa:
O uso da moldura em Khadji-Murát
No caso de Khadji-Murát, a narrativa central, onde consta a história do personagem-título, fica embalada entre a moldura, que começa e encerra o romance.
Na abertura, somos introduzidos a um narrador em primeira pessoa, que conta da vez em que, voltando para casa, passava por um campo recém-lavrado. Esse narrador-personagem se confunde com o próprio Tolstói, que, contemporâneo de Khadji-Murát, serviu ao Exército russo no Cáucaso.
Esse passeio singelo contém dois elementos, um implícito e outro explícito, que o relacionam à narrativa emoldurada. São eles o campo lavrado e uma pequena flor chamada bardana, também conhecida como “tártaro”.
1. O campo lavrado
O narrador não deixa de reparar no quão bem lavrada está a terra, “de modo que em todo o caminho não se via uma planta, uma ervinha sequer, tudo era negro.” (pág. 26) A partir disso, reflete sobre o poder destrutivo do homem, que mata para manter a própria vida.
Na superfície, o narrador está fazendo uma reflexão um tanto banal sobre a cadeia alimentar. Relacionado à narrativa central, porém, o campo lavrado se torna uma metáfora da guerra, que, apesar de não ser uma necessidade vital do homem, é praticada como se fosse, não raro assumindo a face da maldade pura.
No romance, a maior expressão disso está no capítulo XVII, em que os moradores de um aul5 destruído pelos russos retornam para avaliar o estrago (págs. 131 e 132):
Sado, em casa de quem Khadji-Murát se detivera, fora com a família para as montanhas, quando os russos se aproximaram do aul. Voltando, encontrou a sua sáklia6 destruída, o telhado derrubado, a porta e os postes da galeria queimados e todo o interior da casa coberto de imundície. O seu filho, aquele rapazinho bonito, de olhos coruscantes, que tinha olhado com deslumbramento para Khadji-Murát, fora trazido morto para a mesquita, sobre um cavalo coberto com uma japona. Tinha as costas atravessadas por uma baioneta. A mulher de ar venerável, que servira a refeição a Khadji-Murát durante a sua visita, estava agora com a camisa rasgada no peito, deixando à mostra os seios decrépitos, pendentes, e, os cabelos soltos, mantinha-se curvada sobre o filho, dilacerando o rosto com as unhas e vociferando sem cessar. Sado apanhara a pá e a picareta e fora com os parentes cavar o túmulo do filho. O velho avô estava sentado contra a parede da sáklia destruída e, afinando uma vareta, olhava estupidamente diante de si. Acabava de voltar do seu colmeal. Foram incendiadas as duas medas de feno que lá havia, quebradas e queimadas as cerejeiras e os abricoteiros plantados pelo velho e, sobretudo, destruídas todas as colmeias. Ouvia-se o uivar das mulheres em todas as casas e na praça, aonde foram levados mais dois corpos. As crianças pequenas urravam, acompanhando as mães. Urrava também o gado faminto, que não recebia mais nada para comer. As crianças mais crescidas não brincavam, encarando os adultos com olhos assustados.
A barbárie é acentuada pelo desejo de vingança atiçado nos habitantes do aul, que passaram a nutrir pelos russos um ódio tão profundo que já não os reconheciam como gente, mas como vermes a serem esmagados. A violência é um ciclo sem fim.
2. As bardanas
Ainda na moldura, o narrador começa a colher um ramalhete de flores, detendo-se ao deparar com uma bardana carmesim. Quer acrescentá-la ao ramalhete, mas, ao tentar cortá-la, enfrenta dificuldades:
“não só havia espinhos por todos os lados, que me picavam mesmo através do lenço em que enrolara a mão, mas também a haste era tão forte que lutei com ela uns cinco minutos, rompendo as fibras uma a uma. Quando, finalmente, aranquei a flor, a haste estava em frangalhos, e a própria flor não parecia tão fresca e bonita. E o seu alambicado grosseiro não combinava com as flores delicadas do ramalhete.” (p. 26)
Essa flor agreste é uma metáfora do homem caucasiano. Em isolamento, é possível apreciar sua beleza exótica, mas jamais se pode cativá-la: fica deslocada em meio às outras flores. Pode-se traçar um paralelo entre a agressividade de seus espinhos e a resistência dos caucasianos ao domínio dos russos.
Mais adiante, o narrador depara com outra bardana: uma flor que foi claramente calcada pela roda de uma carroça, mas que sobrevivera (pág. 27):
“se erguera mais tarde, ficando inclinada para um lado, mas sempre se mantendo de pé — como se lhe tivessem arrancado um pedaço do corpo, revolvendo-lhe as entranhas, e lhe decepassem um braço e furassem os olhos, mas ele sempre se mantivesse firme, sem se entregar ao homem, que destruíra todos os seus irmãos ao redor.”
Essa flor é uma metáfora não do homem caucasiano de forma geral, mas a Khadji-Murát em particular, pois a forma como ela sobreviveu à lavragem e à roda lembram o narrador da forma como Khadji-Murát. A partir dessa lembrança, ele passa os próximos XXV capítulos contando a história de Khadji-Murát, para então retornar à moldura, que encerra o romance numa simples frase (pág. 183):
E foi essa morte que a bardana esmagada, em meio ao campo lavrado, me fez lembrar.
Em Khadji-Murát, não há nada de gratuito no uso da moldura. Ela confere ao romance uma estrutura esférica, terminando no mesmo ponto em que começou: na imagem da bardana esmagada. Além disso, ao estabelecer um narrador-personagem, a moldura impinge a narrativa central de uma perspectiva de todo particular, tingindo-a de um lirismo que, de outro modo, se faria ausente.
Notas
Todos os excertos, com suas respectivas paginações, foram retirados da tradução de Boris Schnaiderman, presente em TOLSTÓI, Lev. Khadji-Murát. São Paulo: Editora 34, 2017.
WOOD, James. Como funciona a ficção. São Paulo: SESI-SP Editora, 2017. Ver páginas 117 a 120.
Brinquedo russo composto de uma série de bonecas, progressivamente menores, que podem ser postas umas dentro das outras.
Procurar o ensaio O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.
Povoado de caucasianos.
Cabana típica da região do Cáucaso.